POEMAS

ODE AO INOMINADO


Em mim,
ó inominado, ó infigurado,
ó transfigurado,
em mim subsistes.

Sémen primeiro e perene,
aparição absurda no vazio,
nódulo subtil e diáfano,
continente microcósmico de todo o cósmico,
ímpeto puro, movimento puro,
espectacular súbito actor original,
haver ser no não-ser,
espaço conquistado ao nada,
tempo inventado,
átomo, molécula, ínfima partícula,
verbo indizível,
minúsculo, majestoso,
pequena gigantesca energia,
forma matéria achada,
em mim subsistes,
existes,
persistes,
vives crescendo até à altura do infinito,
teu-meu fito
neste atroz, maravilhoso porto
em que me debato.

Noite alta,
o sonho explode, a angústia, esperança,
saudade,
estranheza de entre-acordar e entre-viver,
emersão em véus, objectos, emoções que se dissipam
num quotidiano mal recuperado.

Noite alta, ó inominado,
sou em ti o enigma de aparecer, de aparecer-me
e ser.



in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp.9-10.



ODE AO DESEJO


Desejo,
Desejo de outrem que não eu.
Caminho pela cidade nevoenta
E tudo é um reflexo abominável de mim.
Aquele homem apressado cruzando uma praça,
aquele garoto chorando com a cara entre as mãos,
aquele jovem gesticulando, veemente…
Tudo é eu num espelho deformado,
todo o universo é um sarcasmo,
a chuva goteja trágicas gargalhadas,
estou só,
sou só,
só dentro da imensa solidão,
só, ilha sem mar,
só, ilha sem continentes do outro lado do mar,
só, ilha sem naus que não levariam a parte alguma,
inútil,
estéril,
irreconhecível sem o espelho
inconcebível de uns olhos, outros,
apenas pressentidos.

É preciso,
é absolutamente necessário inventar uma presença,
é preciso imitar,
ó ardência, ó ímpeto, ó desejo,
é preciso imitar Deus e criar
ó desejo,
outrem que não eu fora de mim,
outro ser
diferente atraente ardente
que me faça quebrar o círculo fatal,
que me fale com outro silêncio,
que me conforte por ser apenas o sinal
de que a palavra ilha é uma abstracção,
outro ser que receba, ó desejo,
a força e o frémito e a substância e a vida
e o acto
que há em mim
e assim me cumpra enfim
não Deus mas criador
no êxtase pressentido do amor,
no fruir conceber ser,
na cisão legítima que te peço,
ó desejo,
ó verbo,
na enigmática cisão,
mãe da união
de todo o morrer e renascer.


in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 12-13.



ODE AO NÁUFRAGO


… e depois de desceres ao limite de ti próprio
e depois de obedeceres a todas as tuas ordens
e depois de prestares culto ao teu sentir
e depois de conheceres o teu nojo e a tua glória

e depois de percorreres todos os espaços do teu ser
e depois de provares todos os impulsos que te agitam
e depois de fruíres a majestade do teu eu
e depois de seres tu, solitário, senhor,
e depois de conheceres o fracasso da vitória
faz-te outrem do que foste ou do que quiseste ser
e fora de ti procura o molde teu
que em sonhos um claro espelho reflectiu.

Ó náufrago,
ó perdido viajante,
ó caminheiro errante,
ó conquistador defraudado,
tudo fora de ti é matéria em ti de salvação,
tudo é caminho de reintegração,
as coisas visíveis e as coisas invisíveis,
os homens e os eventos,
os símbolos e os sinais,
as letras universais
da escrita de Deus nos tempos e nos ventos,
o teu certo caminho desenhado

neste mundo de todos os possíveis.
Ó náufrago,
Ó perdido viajante,
a tempestade é talvez afinal uma ilusão,
talvez a carinhosa mão
segurando o espelho
onde enfim te vês
pela primeira vez.
Caminha no espaço transcendido,
Vai,

a realidade espera-te
como tu a esperas.


in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 15-16.



ODE À ALEGRIA

 

Na hora matinal do ser,
a face diurna
no tempo da infância
eu canto a alegria, eu canto a alegria.

Alegria de estar vivo
e ser a seiva a brotar
e ser a vida a brotar
e ser o impulso viril
que abre os caminhos, que sobe as montanhas,
que descobre outra vez o que já fora esquecido
que refresca, que renova, que retoma
e dá o passo que ainda não fora dado.
Na hora matinal do ser,
no riso da criança,
no sorriso do velho,
o mundo nasce outra vez,
o homem separa-se da argila,
regenera-se o ímpeto criador
e a alma humana, genesíaca,
levanta ao alto o universo.
Na hora matinal do ser,
na gargalhada do jovem,
no canto da mãe,
desvela-se, da terra, o enigma,
revela-se, da água, o segredo,
mostra-se, do ar, o sentido
e descobre-se, do fogo, o mistério,
não decerto por razões e por conceitos,
mas sim por dizer sim,
Senhor, sim, sim
na confiança,
na euforia,
na esperança
e na alegria que brota, espontânea,
do diálogo franco,
dos olhos nos olhos,
das mãos estendidas,
das vozes sinceras,
a infância revivida
na idade transcendida.
Na hora matinal do ser,
na face diurna,
inesperada e fugaz surge a alegria,
fugaz e breve,
rápida como um clarão,
aleatória,
surpreendente,
ela chega não sei de que esferas longínquas,
atravessando não sei que paragens sombrias…
No seio da viscosa indiferença,
no ritmo mecânico da árida utilidade,
na perversão do vício
ou no sacrifício sem grandeza,
na própria câmara asfixiante do sofrimento,
para além das mil máscaras da dor,
nos olhos febris do doente,
nos olhos ardentes do revoltado,
nos olhos cansados do vencido,
nos olhos fugidios do humilhado,
nos olhos desesperados do escravo,
nos olhos vazios do miserável,
ela nasce,
espontânea e fugaz,
flor da rocha,
flor da lama,
flor absurda em terra absurda,
e desabrochando, radiante,
ainda que só por um instante,
vem trazer à corrupção
o protesto da vida,
a afirmação do ser,
o sinal da perene mocidade do mundo,
o signo da renovação
o signo da ressurreição.


Na hora matinal do ser
- a manhã renasce em todos os momentos - ,
na face diurna
- depois da noite, sempre o dia chega -,
no tempo da infância
- a infância é eterna -,
Perdoai-me, Senhor,
eu canto a alegria, eu canto a alegria,
eu canto a alegria…


in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 61-63
.



ODE À ESPERANÇA

                                                                                 

                                                                           Ao Eduardo José 
Brasão
Na hora destinal do fim,
no limite do fracasso,
no tempo cadente da derrota,
eu canto,
eu canto a esperança.
Ó tês violácea do suicida,
ó imagem atroz do desesperado,
ó alma caída na desgraça,
envolvida num círculo fatal!
Partiste na violência
e, no entanto, no último minuto,
porventura no instante da passagem,
talvez mesmo no que chamamos morte,
a esperança, creio, te tocou,
pois esperar,
ainda que no impossível,
é condição do homem peregrino.
Que potência de alma,
que sentimento motor
nos permite subsistir por entre os escombros,
quando tudo em nossa volta se aniquila?
Ontem morreu um pai,
hoje um irmão,
quem, amanhã?
Somos vivos provisórios,
somos estrelas cadentes,
somos cadáveres virtuais,
somos vizinhos da morte,
e no entanto,
até ao derradeiro alento
fazemos como se o tempo
fosse eterno
e como se o nosso destino
fosse infindo.

Eu canto,
eu canto a esperança,
porque a esperança nos leva,
impolutos e idênticos,
até ao que chamamos morte,
porque a esperança nos conduz
para além da humana sorte,
afeiçoando ao perpétuo movimento,
sempre até ao que chamamos fim,
o afã do nosso aperfeiçoamento.
Vago, diurno sentimento,
Teologal virtude,
peso subtil que equilibra o sofrimento,
socorro de Deus à alma aflita,
consciência de que a vida é uma viagem,
e de que para além de um porto
há sempre um outro porto,
bonança na tempestade,
confiança na catástrofe,
esperança,
ponte do finito ao infinito,
enigmática mensagem,
bálsamo,
evidência,
indesmentível vivência…

Na hora destinal,
no limite,
no tempo cadente da derrota,
em qualquer rota,
em face da vida e em face da morte,
eu canto,
eu canto,
eu canto,
eu canto a esperança.

in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 67-69.



ODE À GRAÇA
                                                                                      A sete amigos

Na hora cinzenta da descrença,
no fundo da negação,
no tempo hostil da desarmonia,
eu canto a graça,
Senhor,
canto a graça invocada,
canto a graça inesperada,
canto a graça quotidiana
e canto a graça invulgar
que oferece à alma desgarrada
um novo ar para respirar.

Conheço bem a luta da existência,
a feira das vaidades,
a guerra dos poderes.
Conheço a realidade hostil e desgastante
dos corações humilhados a vingarem-se
das ambições em liberdade a descerem sem cessar
para o que julgam o mais nobre e o mais alto.
Conheço o desprezo e o despeito,
conheço da injustiça o travo
e da escravidão o temor e o tremor.
Conheço a doença e a morte,
conheço a saudade e a angústia,
conheço também a revolta
que nos leva raivosamente pelas ruas,
altas horas da noite planeando desforras.
Sei o que é ver na beleza fealdade
e troçar de valores e ideais.
Sei olhar o bem
vendo o mal,
sei fugir,
sei odiar,
sei o que é viver em desacor
ferido e ferino,
turbilhão de sentimentos recalcados
num universo hostil e perigoso.
Mas nesta hora cinzenta,
Senhor,
na hora do mal,
na hora da desarmonia,
eu canto a graça,
canto a graça invocada,
canto a graça inesperada,
canto a graça quotidiana
e canto a graça invulgar
que oferece à alma desgarrada
um novo ar para respirar.
Que volta de maravilha,
quando a nossa alma,
ferida,
tudo aceita como prova,
e se encontra por encanto
numa realidade nova
numa vida transcendida
em que a história
é providência,
em que a memória
é vivência
de fantástica aventura,
de ciladas,
de embuscadas,
de traições,
de prisões,
de um jogo prodigioso
de exacto significado.
Que volta de maravilha,
quando a paisagem, radiosa, se colora,
quando o sol brilha sobre as águas turvas,
quando, solitários, alguém nos faz companhia
e a nossa alma, confortada, enlevada,
se dá toda aos homens e ao universo.
Que volta de maravilha,
Senhor,
o beijo da amada,
o despertar do filho,
a árvore plantada
e a obra por nossas mãos conseguida.
O ritmo do ser
faz-se nosso
e o coração, batendo-nos no peito
respira como Deus a criação.
Que volta de maravilha,
quando os fumos se dissipam,
quando as dúvidas se desfazem,
quando todos os elementos em conflito
se integram no mesmo movimento
e quando, atónitos,
reconhecemos o fim e o princípio,
a luz que separa as sombras,
a razão universal e misteriosa
de que todo o mundo, inteiro e vário,
é indício,
é cifra,
é sinal
que o mal
não nos deixava ler.
Protagonista encoberta,
companheira generosa e disponível,
invisível promessa que mil vezes
nos estende a sua mão aberta
a graça segue-nos sempre,
atena,
próxima,
dentro e fora de nós,
ao alcance da voz
e do silêncio.
Mas nós, desatentos,
a esquecemos, e por isso,
na hora cinzenta da descrença,
no fundo da negação
no tempo hostil da desarmonia,
eu canto a tua graça,
Senhor,
eu canto a graça invocada,
eu canto a graça inesperada,
eu canto,
eu canto a graça…

in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 70-73.




ODE AO MOVIMENTO

                                                                                                   Ao Álvaro Ribeiro

Sonhei que de um sonho despertava,

sonhei que os meus olhos tudo viam,

sonhei que em meu redor tudo se detivera,
sonhei que eu próprio estava imóvel,
imóveis os meus membros, imóvel o meu corpo,
sonhei que lá dentro, os meus filhos não corriam,
sonhei que o relógio da parede se calara,
de cidade em cidade toda a vida se fixara,
o tempo já não era,
pensei no meu sonho que era isto o inferno,
sem fogo, sem imagens temerosas,
tudo igual e familiar,
a minha rua e o meu lar,
as cidades, as vilas, as mesmas pessoas,
mas tudo imóvel como eu,
e os ponteiros dos relógios não marchavam
e nem sequer as poeiras tombavam
sobre esta realidade para sempre detida
e nem sequer um lamento se erguia
destas almas fechadas nos seus corpos
e nem sequer uma lágrima caía
destes corpos encarcerados num espaço
onde nada fluía, nada, nada,
nem uma só lágrima neste sonho atroz.

Sonhei que do sonho de um sonho despertava.

que subitamente todas as coisas se moviam,
que lá dentro os meus filhos corriam
e que a minha alma do corpo enfim se libertava.
Ó movimento,
ó subtil energia,
oculta alegria
de não ser objecto ou coisa,
de ser perene viagem,
jamais fixada imagem,
euforia
de ser para caminhar,
de ser para atingir
o porto que ninguém sabe.
Ó movimento,
não o que no corpo cabe,
não o do espaço percorrido,
não o do ciclo sempre repetido,
ó movimento da alma inquieta e livre
sempre demandando um além do gesto,
um além do desejo, um além do passo,
da forma à perfeição,
da promessa ao acto,
da carne ao espírito
do ódio ao amor, da realidade conflituosa
à natureza transcendida, à paz gloriosa,
finalidade de todo o movimento,
enquanto espaço houver,
enquanto houver tempo,
enquanto sofrimento, enquanto dor, enquanto intolerância,
enquanto mesquinhez, enquanto ignorância
nos homens subsistirem,
nos mitos persistirem,
nas ideias, mascarados, continuarem,
nas utopias se insinuarem.
 

Ó movimento,
Permanece connosco neste sonho
e leva-nos contigo,
muito para lá do que imaginar sabemos,
para lá das ideias, dos conceitos,
para lá das utopias e dos mitos,
para lá dos ideais anquilosados,
para lá de leis e instituições,
para lá das verdades diminuídas,
para lá do nosso corpo, da nossa própria alma,
leva-nos, perpétuo, incessante movimento,
leva-nos contigo até à fonte,
até Deus, onde cessa a discórdia,
onde a vida se cumpre, onde a verdade é.
Ó movimento,
sê a ponte, sê o vento,
leva-nos para lá do que imaginar sabemos,
justifica-nos,
legitima-nos,
ó movimento
fora de nós em nós,
ó fluência do verbo,
ó existir dinâmico no agir universal,
ó desejo de ser,
ó amor vital,
ó integração,
ó libertação,
ó suprema viagem de descobrimento,
ó movimento, incessante, perpétuo movimento… 


in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 86-89.